2 de agosto de 2019

Seu filho hoje aprendeu uma palavra
seus ossos dormem crescendo
em breve andará com firmeza
saberá a ciência
do chão
em breve a língua tomará
conta dele
vai emudecer o mundo
moldar seus pequenos dentes
em breve a língua será a mãe
mais do que você é a mãe
*
Uma primeira pessoa cheia de pequenos animais
e coisas esquecidas nos cantos
e folhas e filó
dirige-se a uma segunda pessoa
com um buraco no meio
onde se pode guardar o pão
ou esconder uma chave
enquanto uma terceira pessoa
da estatura ideal para se pendurar um anúncio
observa de longe
assoviando uma pequena canção
E no entanto entre elas
a primeira, que fala
a segunda, que escuta
a terceira, que assiste
o enigma do mundo
mudo
E o silêncio
que constroem
com palavras
muito antigas
*
eu é quem diz eu
quando conversam eu e tu se tornam
alternadamente tu e eu
no silêncio a primeira pessoa é a que cala
a segunda pessoa é aquela para quem se cala
a terceira pessoa é aquela sobre quem se cala
é materna a língua em que se silencia
(por isso o silêncio apresenta problemas bastante específicos
para a tradução)
só me calo
em português
Somos como duas línguas estrangeiras
em contato
influenciando uma à outra
fazendo empréstimos e trocas há tanto tempo
que nem sempre se sabe
quem tomou emprestado de quem
como é comum entre amantes
que compartilham uma biblioteca
duas línguas cheias de palavras que se escrevem de forma idêntica
e se pronunciam de forma ligeiramente diferente
duas línguas que compartilham palavras semelhantes com sentidos diferentes
ou em que uma mesma palavra que numa se encontra amiúde
nos contratos de aluguel
na outra apenas se usa em contos de fadas e orações
duas línguas estrangeiras
em contato
com suas histórias de violência e recuo
hostilidade e hospitalidade
ressoando uma os sons da outra
movendo-se como placas tectônicas
com suas camadas de sedimento antigo
e pequenos seixos, rolantes, desprendendo-se no caminho
duas línguas estrangeiras
em contato
como periferias de grandes cidades
com seus comércios e casamentos
disputas e empréstimos
deixando uma na outra rastros
como os do sol sobre os corpos
ou resíduos
como borra de café nos copos
duas línguas estrangeiras
esquecendo-se às vezes de si mesmas
mudando juntas de jeitos diferentes
mantendo porém pequenos enclaves
intraduzíveis
como pequenas ilhas
duas línguas nas quais duas pessoas são capazes de entender uma à outra
surpresas e alegres por entenderem uma à outra
sem nem perceber que não se entendem tanto assim
*
Arremessamos palavras
uns contra os outros
tomamos as palavras rapidamente
nas mãos
sentimos seu peso
e as lançamos
setas pesadas demais
para atingir o alvo
que já se distancia
acenando
Meu amigo,
quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
esperando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos
com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol
mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo
não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágioa mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
uma papoula sem cabeça
e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra
(embora em torno das coisas sempre se ajuntem palavras como cracas no casco
de uma embarcação antiga)
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada a uma lembrança
como uma lâmpada num bocal
um poema não é mais
do que uma pedra que grita
risque por favor
esta palavra

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